Nossa Senhora da Glória foi o meu pontapé inicial na magistratura. Primeira comarca, e uma série de primeiros atos – despachos, decisões, sentenças -, que procurava prolatar no prazo devido, dando sequência à demanda que jazia nos escaninhos cartorários à míngua de um juiz titular durante os últimos quatro anos. Depois, vinham as audiências em quatro termos, designadas e realizadas, nos horários religiosamente devidos, o respeito ao jurisdicionado, e, assim, os processos andaram ao ponto buscado, isto é, a sentença, dentro da real e efetiva prestação jurisdicional que se espera do Estado-Juiz.
A comarca ficou para trás, como uma página virada, com a remoção para Campo do Brito, passando a ser tão só um ponto da história de minha vida, na experiência laboratorial vivida, no positivo aprendizado diário, quando procurei distinguir os passos seguros das topadas, afinal, era apenas o prelúdio de uma carreira que já atinge quarenta anos, espalhada em dois juízos diferentes, o estadual e o federal, e, ademais, no último, nas duas instâncias. A idade, adiante, se constituirá no cancelo para me colocar na inatividade. Que demore! Pois bem.
Tivesse de responder, hoje, o que mais me ficou da minha passagem pela Comarca de Nossa Senhora da Glória, eu responderia que não foi a experiência adquirida, a alegria de poder tocar o serviço para a frente, porque tudo isso se viveria e se faria em qualquer outra comarca. O que mais me ficou, bem único e exclusivo de Nossa Senhora da Glória, foi a presença de Nair Aragão Feitosa, escrivã do Cartório do 1º Ofício, exemplo singular do sangue holandês que o Rio São Francisco trouxe de Recife, no final da Invasão Holandesa, e, que tão bem se acomodou e se espalhou no sertão sergipano, ocupando território que, depois, o homem batizou de Porto da Folha, de Gararu, de Poço Redondo, de Nossa Senhora da Glória, de Ribeirópolis, de Moita Bonita, de Itabaiana, entre outros, raça de homens e mulheres altas, pele branca, cabelo aloirado, que, apesar de trezentos e tantos anos, mantém intactas algumas características.
Nair Aragão Feitosa, no esplendor de seus noventa e nove anos, é o exemplo mais fiel e perfeito do elemento alienígena que aportou em território sergipano, quando não se tinha mais interesse em lutar pela manutenção do domínio holandês em Pernambuco, nem se queria mais voltar para a terra de origem. Evitando a guerra final que a reação pernambucana ditava, o holandês, ao recuar para plagas desconhecidas, deixou sua semente bem firme no sertão sergipano.
O detalhe é apenas físico, porque se sobressaí à primeira vista. Fica a grandeza de espírito, a elegância dos gestos, a vivacidade da palavra, a memória prodigiosa a englobar o passado mais recente de Nossa Senhora da Glória, a generosidade que o coração dita e as mãos espalham, e qualidades tantas outras que dispensam referência, tudo na mulher que, esposa e mãe, de repente, fruto das intempéries da vida, a levar para uma dimensão diferente a figura de Pedro, ou seu Pedro, como ela, cerimoniosamente, o chamava antes do namoro, teve de sair à luta, ocupando o espaço deixado pelo esposo, para, agora, se tornar escrivã, no comando de um cartório de tarefas complicadas, executando, por outro lado, as ordens judiciais, emanadas de tantos feitos, atividades que, evidentemente, até serem enfrentadas, assimiladas e vencidas, lhe mostram o outro lado da vida, nos espinhos de muitos tropeços.
Não fosse Nair Aragão Feitosa, a minha passagem pela Comarca de Nossa Senhora da Glória seria uma pálida lembrança, entre tantas, que a vida nos confere. Dona Nair ficou como uma luz que não se apagou, a manter acesa a minha passagem, em tempos tão distantes, mesmo depois da minha remoção, e por aí afora, incluindo meu ingresso na Justiça Federal.
E entre tudo, registro a emoção de, no dia mais triste de minha vida, a presença de Dona Nair, na Capela do Cemitério das Almas, de Itabaiana, numa tarde quente de domingo, quando velávamos o corpo sem vida de Iana, que me fez explodir em choro, ao vê-la, pela solidariedade que me prestava, no infactível conforto ao pai que perdia a filha, mostrando que, naquele momento tão triste, estava ali, silenciosa, a dividir comigo a tragédia que me sufocava, porque para isso servem os amigos.
Mas, de alegria forremos a data de hoje, nos efusivos parabéns a Nair Aragão Feitosa, que o peso dos anos, se dificultou sua locomoção física e sacudiu sua voz, não alterou seu espírito, fazendo com que cada dia que viva e sobreviva seja sempre uma lição de amor e de exemplo a todos que a cercam.