Viagens para Aracaju

A viagem para Aracaju se fazia de marinete. A expressão jardineira, como sinônimo de ônibus, não habitava o meu dicionário de infância. Só depois é que aprendemos a denominar o veículo de ônibus. Das primeiras viagens, não me lembro. Algumas cenas na casa de tia Anita, onde ficávamos, na Vila de João Costa, lá para as bandas da linha do trem, perto do Mercado. Depois, com a mudança dos pais para Aracaju, mamãe escrevia para as irmãs nos esperar na Rua da Frente, onde a marinete fazia pousada. A imagem que fica e me impressiona, imagem que revejo, comovido, em velhas fotografias, são dos fios de energia elétrica, nos postes, mais de dez, o que me levava a comparar com os pestes fincados nas ruas centrais de Itabaiana, onde apenas dois fios se faziam presentes. 

Do Rio Sergipe, ali, na frente, não me lembro de ter me causado nenhuma impressão forte. Gravada permanece, igualmente, a cor cinzenta dos prédios na Rua da Frente, rua larga, com paralelepípedo, onde as marinetes ficavam o dia inteiro, à míngua de uma rodoviária, que só no Governo Luz Garcia foi construída. 

Mas a viagem, que a gente só sabia na véspera, era motivo de festa, com direito a vestir a melhor roupa, confeccionada para o Natal, tudo escolhido de acordo com a imperial vontade de mamãe que cozinhava um bolo, para a filharada comer durante a viagem, porque esta era longa, com parada demorada em Areia Branca, e, depois, em Laranjeiras, para os adultos fazerem lanches. Se comia do bolo, não me lembro, porque o que me chamava a atenção era o longo percurso, considerando ser de grande proeza o motorista conhecer toda a estrada que ligava Itabaiana a Aracaju. Na lembrança, eu, em pé, ao lado da janela, calado, vendo o verde da paisagem, no entusiasmo de, mais uma vez, poder pisar os pés em Aracaju.

Acho que até os dez anos de idade, nunca viajei para Aracaju em outro veículo senão em marinete, que, salvo engano, saia de Itabaiana logo no início da manhã, para só retornar no período da tarde, em horário que, exatamente, não me vem à cabeça, porque, para a meninada, o relógio e as horas não existem, nem fazem sentido, e, muito menos, para a gente que, orgulhoso da viagem, procurava extrair da permanência, em Aracaju, o máximo que a capital exibia e oferecia, sobretudo porque não sabia quando retornaria, outra vez, dado que viajar e não viajar era matéria da alçada única de mamãe, de cuja boca, na véspera da viagem, enfim, a gente tomava conhecimento, até mesmo ante os preparativos que ela encenava.

Nas viagens, o prédio do IAPC, a que papai, como comerciante, estava ligado, no fundo da atual Secretaria de Saúde, no beco dos cocos. Na lembrança, mamãe e os três filhos. Alba ia se submeter a tormentosa tarefa de fazer exame de sangue. Quase que derruba todo o edifício, segura aqui e ali, para só depois de muita e inútil resistência, oferecer, pacificamente, o braço. Bosco e eu olhávamos calados a cena, na certeza de que seríamos as próximas vítimas, de acordo com a seqüência da idade. Ninguém se atrevia a perguntar nada, o medo rodando cada cabeça. Enfim, o exame foi feito. Mamãe conversou alguma coisa e saímos os quatros, sem que ninguém mais tivesse de ser submetido a mesma tortura.

As viagens para Aracaju fazem reativar o termo cozinha, utilizado para o último banco do ônibus, termo que, até o tempo de estudante universitário, ainda era usado. Quem viajava na cozinha se via na linha de tiro das brincadeiras, repetitivamente as mesmas, no sentido de mandar logo o cafezinho, de preparar a refeição, alusões que, invariavelmente, sempre eram feitas, ainda que, com o tempo, fossem perdendo a graça. Do meu tempo, as marinetes pertenciam a Luiz Prado, que morava na esquina da Praça da Santa Cruz com a Rua São Paulo, em cuja residência, artesanalmente, eram vendidos os bilhetes por quem da família estivesse disponível. Os ônibus eram poucos, do que me lembro, recordando-me de um, que era conhecido como o Gostosão, e de uma marinete, de formato mais bonito, que recebia o nome de Marta Rocha. Este, inclusive, ao chegar a Itabaiana, abriu as portas para uma volta em torno da cidade, gratuitamente, para quem topasse. Eu, que estava por perto, aceitei a parada. O que não entendia era que o passeio, no fundo, simbolizava um tipo de propaganda. Fazer referência as marinetes de Luiz Prado era mais prático de que mencionar o nome da empresa, denominada de Nossa Senhora das Graças, nome que não aparecia.

Dessa época e por esse tempo, a figura do cobrador assumia ares de real importância, por se constituir no correio do povo de Itabaiana, na remessa de cartas e encomendas para Aracaju, e vice-versa. Motinha, hoje em outra dimensão, encarnava o cobrador educado, paciente, pronto a fazer um favor para todos, quer os que estavam lá, quer os que estavam cá. Não me lembro de Motinha em atividade. Só de referência ao seu nome e atuação. Quem me ocupa a memória é Totonho, ou seja, Totonho das Marinetes, ao que parece, servidor que Luiz Prado levou para Itabaiana e lá ficou quando a empresa passou para outro proprietário e, deste, enfim, para a Bomfim. A mulher de Totonho morreu de parto, ocorrência lastimada e enterro concorrido, que eu fui ao lado de meu pai, que, aliás, não perdia um sepultamento. Viúvo, Totonho casou com uma senhora, de nome Lídia, salvo engano, que fora levada a Itabaiana pela família de Luiz Prado. Totonho morreu na década de oitenta, em um choque de veículos, quando vinha a Aracaju ver um jogo do Itabaiana, em um dia de domingo.

J. Rabelo, no romance Almas torturadas, faz alusão a uma viagem Itabaiana-Aracaju dos anos quarenta, destacando a parada em Areia Branca, então povoado, onde os adultos atrasavam a viagem com suas comilanças. De minha parte, nunca desci da marinete. Pacientemente esperava o prosseguimento da viagem, certo que, em Laranjeiras, outra parada demorada, a frente de uma padaria, ocorreria. Depois, viria uma ponte, no meio da estrada de rodagem, e, adiante, alguns sinais que anunciavam a proximidade de Aracaju. Aí, a gente ficava feliz, imensamente feliz.