Laboratório Criminal

A Comarca de Nossa Senhora da Glória, dos meus tempos de juiz de direito, 1978-1980, era um barril de pólvora, com crimes pipocando aqui e ali, ocorrência que se alastrava pelos outros municípios, Monte Alegre de Sergipe, Poço Redondo e Canindé de São Francisco, que dela faziam parte. O Promotor de Justiça, Moacir Soares da Motta, que lá encontrei, e, que deixei, em plena atividade, ao me remover para a de Campo do Brito, em pilhéria com o oficial de justiça de Monte Alegre, costumava perguntar quem estava de molho para ser assassinado, tudo porque os delitos se verificavam com freqüência, a maioria ser deixar pista alguma, os inquéritos morrendo nos arquivos por falta de condições de se chegar até a identidade do assassino. O ambiente era assustador, porque se matava por qualquer motivo insignificante, como um beijo dado pelo namorado na namorada, uma melancia desaparecida/furtada e uma discordância tola entre amigos.

Quando assumi o comando da comarca, encontrei a cidade de Nossa Senhora da Glória indignada com o assassinato de um vigilante, em pleno centro urbano. Os dois acusados presos, interrogados por mim, negaram a autoria. Nem estavam no local, no momento, nem tinham nada a ver com o fato. Na audiência seguinte, fui alertado pela Promotoria Pública para o depoimento de uma testemunha ocular. A testemunha negou. Não estava no local. Indagada porque tinha feito declarações em sentido contrário perante a autoridade policial, afirmou que fora ameaçada pelo delegado para dizer o que não vira. Perguntei-lhe se confirmaria à coação alegada na presença do delegado, respondeu que sim.

Marquei a acareação. Antes procurei conversar com o desembargador Luiz Carlos Fontes de Alencar, que me alertou para olhar bem os acareados durante o ato, o que fiz. A testemunha estava calma. O delegado de então, já ex-delegado, mostrava-se nervoso e inquieto. Encerrado o ato, e, devidamente assinado, o ex-delegado estendeu sua mão, que estava suada e fria. Não condenei os dois acusados. A prova não era suficiente.

Em Poço Redondo, a calçada da Prefeitura estava cheia de gente, atraída pela realização do interrogatório do acusado, autor de um assassinato, cujo fato não me vem à memória. O distribuidor da Comarca, Jailson da Silva Monteiro, sombra que me acompanhava, alertou-me para um detalhe: se eu soltasse o acusado naquele momento, ele desapareceria trucidado pela população ali presente. Um pingo de sangue nem um osso ficariam para deixar uma pista. Não foi sem motivo que a viatura policial, que o levava de volta a Penitenciária, foi seguida o tempo inteiro, de Poço Redondo até Nossa Senhora da Glória, os soldados apreensivos, temerosos de um ataque.

Outra vez, foi o marido que surpreende, no mato, a mulher em plena relação sexual com o vizinho. O traído, com dois tiros certeiros, matou os amantes. A mulher foi atingida no meio da cabeça, o homem, na testa, denunciando a posição em que as vítimas se encontravam quando receberam os disparos. A viúva teve dificuldade de me contar o fato, ao ser ouvida, em juízo. Saiu-se pelo caminho do não sabia. Mesmo indagada acerca do que fazia o marido, ao ser assassinado, respondeu que não sabia, nem procurou saber. Não deu para acreditar. 

Em outra ocasião, ouvi a vítima de um disparo na coxa, tiro tomado em plena festa de leilão. A indiferença da vítima era gritante. Monossilábica, sem demonstrar o menor interesse em ser ouvida, terminou, dada a minha insistência, em revelar que não procurara saber quem lhe atingiu, nem, no momento, se sentia feliz em estar ali. Queria era esquecer o ocorrido, o receio, talvez, de ser atingida em local fatal. Em outro processo, a vítima, ouvida, revelava medo, a proteger com o seu silêncio alguém poderoso, de quem, evidentemente, tinha robusto receio.  

Um advogado alagoano, Francisco de Araújo Dantas, que freqüentou a Comarca, escreveu uma vez, em seus arrazoados, que a região ainda se encontrava em processo de colonização. Daí o excessivo número de crimes que nos chegava ao conhecimento, crimes que, muitas vezes, se resolviam na lei do talião, como o do autor de um homicídio, que, perseguido pela polícia e capturado, foi entregue a família da vítima para que o transportasse a delegacia de Nossa Senhora da Glória. Estranho, não? O assassino foi morto em seguida, ninguém sabendo por quem.

Em Manual de Judicatura Aplicada – coletânea de primeiras sentenças (cíveis e criminais) [Belo Horizonte, Nova Alvorada Edições, 1993, 232  ps.], reuni cinqüenta sentenças nos campos cível e penal, a revelar os casos mais interessantes e bizarros que vivi como magistrado estadual, entre eles a sentença de impronúncia dos acusados da morte de José Francisco do Nascimento, vulgo Zé de Julião, em Poço Redondo, ocorrida em 19 de fevereiro de 1961, por absoluta falta de prova, crime abordado por Alcino Alves Costa em Lampião além da versão -  mentiras e mistérios de Angico [s/local e s/editora, 2002, 444 ps.], que a decisão em tela não fez nenhuma referência.    

Quando me removi para Campo do Brito, os poucos assassinatos que por lá ocorreram, sobretudo em São Domingos, não me assustaram. Em matéria penal, já tinha passado por um bom laboratório.