A história do livro em branco

O fato me foi chegando aos poucos, parte por parte, num monótono jogo de xadrez. Primeiro, eram as justificações acerca da idade do interessado. Uma exposição de fatos acentuando que a certidão do registro civil tinha sido extraviada, rasgada, ou se tornado ilegível por ter ficado em local onde, com a chuva, apareceu uma goteira. O cartório não dispunha de um registro daquela certidão, mesmo esta tendo sido expedida, originariamente, pelo dito cartório. Meio estranho para os meus tempos iniciais de juiz de direito de Campo do Brito. O escrivão, não mais aquele que assinara a primeira certidão, mas o atual, me dava uma explicação que eu não entendia direito. O certo era processar o pedido, ouvir as testemunhas, para, com o parecer da Promotoria Pública, proferir a sentença autorizando a lavratura do assento de nascimento e, em conseqüência, a expedição da certidão respectiva.

Foram várias as justificações neste sentido. O escrivão, da atualidade da minha passagem, Antonio Luiz da Rocha, exclamava sempre o nome do de ontem, responsável pela expedição das certidões de nascimento sem ter levado a registro no livro devido. O nome, decorei bem: Salvador, e, salvo engano, Salvador Oliveira, ou Salvador de Oliveira. Minha mãe, que nasceu em Macambira, vizinha a Campo do Brito, o conheceu, e, acrescentava a descrição de ter sido baixo e cabeçudo. Por uma dessas coincidências felizes, o falecido escrivão era avô materno do dr. Rodomarques Nascimento, então advogado militante na Comarca de Campo do Brito.

Pois bem. Depois, em inspeção no cartório do registro civil, teria, enfim, a oportunidade de ver o enorme e pesado livro de registro de nascimento em branco, página por página, sem nenhuma anotação. O escrivão, do meu tempo, me mostrava o livro como se fosse um troféu, a prova do delito queimando em minhas mãos ao folhear página por página, completamente vazio de qualquer anotação. Dúvida terrível me tomava conta, perplexo no meu silêncio, a pensar no motivo que levava um escrivão do registro civil a expedir tantas certidões de nascimento sem ter feito, no livro devido, nenhum registro. Estaria caduco? Em absoluto.

Mas, em Itabaiana, no cartório do registro civil do escrivão Serapião Antonio de Góis, em tardes de longos papos  intercaladas com um bom cafezinho, enfim, a base principal da história me foi revelada. Não me lembro bem como o assunto teve início. Sei que, Serapião, na sua calma e profunda discrição, entre uma tragada e outra, na sua mesa de trabalho, me contou que se recordava de Salvador indo a Itabaiana, no dia de quarta-feira, despachar com o juiz, numa época em que Campo do Brito, deixando de ser comarca, passou a integrar a de Itabaiana na condição de termo. E, aí veio o fato em si, fato que me deixara tanto tempo em dúvida, fato que, no seu âmago, era também uma explicação: Salvador se alojava no cartório de Serapião, vizinho, de parede, do Fórum, como, aliás, anos mais tarde, o escrivão de Moita Bonita vai fazer também. E, no balcão do cartório, era procurado por pessoas de Campo do Brito, que queriam fazer algum registro de nascimento. Salvador não perdia tempo. Puxava uma certidão e saía registrando os nomes, as datas, como se extraísse de um livro tais dados. Ali mesmo, assinava a certidão, fazendo entrega ao interessado.

Serapião, que assistia ao fato, lhe perguntava, depois, se não iria tomar dados de tudo para lançar no livro de registro. Não precisa, respondia o escrivão Salvador, os dados estão aqui, na cabeça. Chegando lá, no cartório, é só passar para o livro. Só que não passava, e, como não anotava, se perdia, naturalmente, a ponto de ter deixado o livro em branco. Daí a explicação, enfim, para as pessoas que perderam a única via do registro de nascimento que foi expedida. O livro, do cartório, não continha o registro, e o novo escrivão, anos e anos mais tarde, não poderia passar uma nova certidão sem que os dados estivessem fincados no livro, que, aliás, continuava, como continua, como vi e cotejei, página por página sem nenhuma anotação, no meio dos outros livros, completamente preenchidos.

Do fato, mergulhamos em uma brincadeira, que o dr. Rodomarques, seu ilustre neto, participava. Está tudo aqui, ó, e, com a mão, apontávamos para a cabeça. Anedota, entre nós, se faz até com as tragédias. Imagine com um fato daquele, farto em riqueza de detalhes. Ainda hoje, mais de vinte depois de minha passagem pela comarca de Campo do Brito, o acontecido me vem à tona, quando, num momento de humor, afirmo que os dados estão na cabeça, sem correr o risco de serem extraviados.

Não conheci o sr. Salvador de Oliveira, nada sei sobre sua vida, nem me arrisco a julgar o livro em branco. A referência ao ocorrido é só uma forma de materializar no branco do papel um fato, essencialmente interessante, que vivi como juiz de direito da Comarca de Campo do Brito, a evidenciar uma atitude isolada de um escrivão que, durante toda a trajetória pelo cartório do registro civil, sempre cumpriu devidamente com as suas obrigações. Difícil, a esta altura, justificar a omissão, resultante na expedição de certidões de nascimento sem que um só registro tivesse sido efetuado. Não há como mergulhar no tempo para encontrar a resposta.

Mas perdura a lição do fato, independentemente de reclamar algumas linhas, décadas e décadas depois, para assentá-lo devidamente, sob pena de se perder no tempo e se esvair na gaveta empoeirada da memória. Há sempre um momento infeliz, em que o serviço não é bem realizado e a brecha fica. É, justamente, por aí que o ladrão penetra e o delito ocorre. Eu vivi um fato assim, no cartório do registro civil de Pedra Mole, então integrando a Comarca de Campo do Brito. Correição em pleno vapor, o Corregedor, des. Fontes de Alencar, presente, ao lado do Corregedor do Ministério Público. O cartório com as portas (ou porta única?) escancaradas, quando o des. Fontes de Alencar abriu o livro de casamentos e pediu para ver um único processo, ou seja, aquele, do registro que apontava. O escrivão (como era mesmo o seu nome?) começou a procurar, em meio aos pacotes guardados nas estantes. Procura aqui, abre um pacote ali, consulta outro pacote, o tempo passando, a noite querendo atracar, e nada do processo ser localizado. Eu, que tinha alardeado que qualquer um seria imediatamente encontrado, me senti compelido a me render. Ficaria para outra ocasião. A correição não passou dali.