O martelo de Seu Abílio dos Caixões


Já faz muito tempo. Vi o martelo e o comprei. No fundo, não era o martelo que eu adquiria, porque já tinha outro, melhor e mais potente, e, raramente, dele ia necessitar. O que eu comprava era, em verdade, um retrato da minha infância, lá nos cafindós da década de cinqüenta, em Itabaiana. O martelo de seu Abílio dos Caixões, em uma sala térrea do sobrado, na esquina da Praça da Matriz com o bequinho de dona Iaiazinha. Martelo na mão, a boca cheia de pequenos pregos, seu Abílio ia colocando os pedaços de madeira, já cortados, uns ao lado dos outros, de maneira a, em poucos minutos, ter o arcabouço da tampa e da parte inferior do caixão prontos. Depois, os pendurava na parede. Faltava revesti-los de pano, o que só ocorreria quando alguém procurasse um caixão para sepultar o parente morto. Cobrir o caixão de pano foi coisa que nunca vi.


Seu Abílio dos Caixões, em verdade, se chamava José Abílio de Oliveira. É meu parente. Sua avó paterna era irmã de minha bisavó. Parentesco distante. Baixo, um tanto barrigudo, bem alvo, nariz curvo, voz firme de quem só vivia brabo. No térreo do sobrado,  de um lado, uma pequena bodega, com pouca coisa a venda, como balas e caramelos. Na outra sala, a sua oficina de trabalho, ou seja, a funerária, atividade maior de sua vida. Tanto que seu nome ficou ligado aos caixões que fazia. E, por uma dessas é que a ele se refere Renato Mazze Lucas, em um dos seus contos, ao focalizar a vida mansa de Itabaiana do final da década de quarenta e início dos anos cinqüenta, do século passado. O tabaréu, na calçada da Prefeitura, querendo comprar um caixão. Mas, entenda-se, não era caixão de defunto. Zequinha da Sete Portas, maliciosamente, indicou a funerária de Seu Abílio, onde o tabaréu chegou, esbaforido e pálido. Seu Abílio, num momento de humor, perguntou se ele já queria ir dentro (do caixão).


Nunca conversei com seu Abílio. Era muito menino para dirigir a palavra a um cidadão de sua idade. No meu tempo de criança, a gente respeitava os limites. Mas, freqüentava, de quando em quando, seu sobrado, outro, no oitão lá de casa, onde seu Abílio morava, no começo da rua Marechal Floriano Peixoto, sobrado há muito derrubado. No térreo, lá para dentro, existia um viveiro de passarinhos que seu Abílio mantinha. Mais de vinte ou trinta. Era um colírio para meus olhos de menino ficar cinco minutos encostado na grade, vendo os passarinhos pularem de objeto em objeto, milho e água nos cacos, aquilo era tarefa que devia tomar muito tempo. Depois de muitos anos, perguntei a mim mesmo: o que fizeram dos passarinhos quando seu Abílio morreu?


É verdade. Seu Abílio morreu, não era eterno. De que, não sei. Talvez porque a medicina, à época, fosse fraca. Seu Abílio queria morrer no sobrado onde residia. Foi o que ouvi. O fazedor de caixões, que me enchia os olhos com seu martelo pequeno, a boca cheia de pregos, deitou-se para morrer, como a gente vê nos velhos filmes e como, de fato, antigamente, ocorria, um chá aqui, um chá ali, ninguém sabendo deter a morte que se aproximava. Num domingo, pela tarde, fui ao sobrado. A cama de seu Abílio tinha sido estendida na sala principal do sobrado. O homem estava deitado, os olhos fechados, a respirar com dificuldade. Meu pai dizia que seu Abílio estava morrendo. Vi a cena, gravei-a no meu cérebro e desci as escadas, porque tinha medo de ficar em meio a tanto gente, que sentada nas cadeiras, esperava seu Abílio morrer. Eu achava que o sobrado não agüentaria o peso e poderia desabar comigo dentro. A morte era aquilo que eu via, calado, sem comentar nada, porque as palavras se tornavam desnecessárias. A cena de seu Abílio deitado na cama, a aguardar a morte, me era inédita.


 À noite, quando voltei do cinema do padre, o ambiente no sobrado já era de velório: cadeiras nas calçadas, luzes acesas, seu Abílio estava morto, meu pai pronto para varar a noite na sentinela do vizinho e parente. No dia seguinte, pela manhã, o enterro. Quando o caixão desceu as escadas do sobrado, Romeu Fotografo (teria sido mesmo ele, ou teria sido Ciro Moreira?) estava lá embaixo com sua máquina. O caixão foi colocado em duas cadeiras, na calçada vizinha, e retirada a tampa. A foto, que meu pai guardou, porque carregava no sangue um pouco de arquivista, eu vi depois: seu Abílio, de camisa de manga comprida, a vestimenta da Irmandade das Almas, as mãos postas na barriga. Ao seu lado, dona Lilia, a viúva, a cara de choro, o neto Lutero, e, um pouco adiante, vendo o morto, a fisionomia de tristeza, seu Etelvino, que, ao que parece, era seu cunhado, também com o traje da Irmandade das Almas.


Na caderneta de anotações de meu pai, vou procurar a data do óbito. Com sua letra, em caneta tinteiro, o registro: Faliceu Sr. Abílio Oliveira no dia 9, as 8 e meia da noite e sepultouse no dia 10 de Agosto as 9 horas, do dia, e, um pouco adiante, o ano, 1959. Os equívocos gramaticais são do original. Meu pai não tinha o primário completo, desconhecendo as exigências de hífen e de crase da última flor do Lácio, escrevendo de acordo com a sonorização da palavra.   


Depois, investigando o passado de Itabaiana, me depararia com seu Abílio, na tropa de choque do coronel Sebrão, seu parente também, no episódio envolvendo o cônego Vicente Francisco de Jesus, em 1916, segundo a crítica violenta dos caxangás que circularam, o padre acusando seu Abílio disso e daquilo em seu Manifesto. Também me depararia com a sua passagem, por seis meses, salvo engano, como prefeito nomeado de Itabaiana, depois da queda de Getulio Vargas. É desse investigar que saberia que seu Abílio era meu parente, fato que, nos tempos de menino, desconhecia.


Os dois sobrados, que pertenceram a seu Abílio, foram derrubados. Ainda os fotografei, na década de setenta, em preto e branco, sobrados que pertenciam à paisagem histórica de Itabaiana provinciana. O do oitão lá de casa foi substituído por uma casa. O da Praça da Matriz, foi caindo, aos poucos, minha máquina registrando a sua queda e decadência, na década de oitenta, em colorido, levando para o chão um pouco dos tempos, em que, de calça curta, parava na porta da funerária para ver seu Abílio trabalhando, o martelo usado na formação do arcabouço de caixões dos mais variados tamanhos.   


O martelo adquirido, que logo se quebrou, foi uma homenagem a seu Abílio. Hoje, quase cinqüenta anos depois de sua morte, e tantos, também, da compra do martelo, leio que a saudade é uma forma de manifestação do envelhecimento. Pode ser.  Não discordo.