Os preconceitos de ontem

Joãozinho Retratista, como fotógrafo, enclausurado em Itabaiana, na década de quarenta, fazia coisas que o cão duvidava em termos de fotografia. Uma delas, foi personagem principal a jovem, das melhores famílias locais, que aparecendo no seu atelier, para tirar uma foto 3x4, terminou figurando em uma montagem, na qual aparecia de calça comprida e de bota, segurando as rédeas de um cavalo. A façanha da montagem, na qual Joãozinho Retratista aproveitava a fotografia de uma artista de cinema, repousava na falta de recursos técnicos da época e no fato de o fotógrafo trabalhar ainda com negativos de vidro, conseguindo, ainda assim, alcançar o grau da perfeição.

Mas, em casa, quando a jovem mostrou a foto aos pais, o desfecho foi trágico: apanhou. Não era recomendável uma moça de família vestir uma calça comprida, e, ainda mais, aparecer em uma fotografia com o traje condenado. Os pais da jovem não concebiam que, da foto, só era da filha a cabeça, porque o resto do corpo, como a blusa, calça comprida e etc., pertencia a uma artista americana. O pau comeu. A foto foi rasgada e a moça caiu na reprimenda da pancada. Mas, Joãozinho Retratista não se abalou. A foto permaneceu a vida inteira em exposição no seu atelier, ao lado de outras, pendurada na parede, ou em porta-retrato de vidro. O atelier era dele e a produção artística também. Os pais da jovem que fossem se danar na casa do atraso e do inferno, deve ter pensado. Ora bolas.

O atraso, é bom ressaltar, não era obra exclusiva dos pais da jovem, um dos quais, a mãe, prima de minha avó paterna. O atraso era fruto da época, atraso que exornava o mundo interiorano, no qual Itabaiana se situava. Joãozinho Retratista entrou com a idéia e a façanha da montagem. A jovem, com o rosto na foto e a surra tomada. A fotografia ficou,  eu vi, todos viram, Joãozinho Retratista contando para todo mundo, por três décadas adiante, a história da foto e suas conseqüências. A gente se espantava, sem se lembrar que a foto foi produzida na década de quarenta, estando a ouvir o relato do fato na de setenta, ou seja, trinta anos depois.

Itabaiana era um reduto fechado, que não abria as portas para nenhum sintoma de civilização, como, aliás, deveria ser todo o interior sergipano, e, um pouco menos, a capital. Uma professora do Grupo Escolar Guilhermino Bezerra, vinda de Aracaju, no meio da década de trinta, foi beijada pelo namorado no oitão da Igreja Matriz. Talvez até um leve ósculo no rosto. A cena foi vista. A cumeeira moral balançou. A diretora da escola, uma solteirona juramentada, vaticinou: esse negócio de moça de Aracaju ensinando em Itabaiana não dava certo. A mesma reação, ou quase idêntica, a do padre Benvindo Tito de Jesus, quase cem anos antes, quando Itabaiana ainda era vila, ocasião em que sua sobrinha, num passeio pelos arredores do centro urbano, foi beijada por Tobias Barreto. Deus do céu! O professor de Latim da pequena mocidade itabaianense foi chamado de mulato pela ousadia do beijo.

Mas, não era só em Itabaiana. Aqui, em Aracaju, um itabaianense, meu amigo, de quem ouvi o relato, já noivo, no final da década de sessenta do século passado, precisava ir três vezes ao dia se apresentar ao futuro sogro, ou seja, pela manhã, pela tarde e pela noite, a fim de deixar o velho tranquilo, porque a noiva tinha viajado a Itabaiana para passar uns dias na casa dos futuros sogros. No caso, é bom recordar que a estrada, que ligava Aracaju a Itabaiana, não era ainda asfaltada, levando um carro, por mais rápido que fosse, no mínimo, um pouco mais de uma hora e meia no percurso da piçarra e da poeira. Mas, o velho queria resguardar a moral da filha e o meio que encontrava era aquele.

Dona Yáyazinha de seu Vivi, uma alegre e simpática senhora, sentada na calçada da casa, via a mulherada passar, se rebelando contra aquelas que traziam as pernas cabeludas. Não continha a sua ironia, que o filho mais novo, Alberto, herdou. Ante aquele monte de cabelos, esbravejava que, se ali, no caminho, era aquela mataria toda, imagine na praça da feira, para onde os caminhos convergiam, como não deveria estar. Mas, a mulherada não raspava as pernas, porque era pecado, alguém deve ter dito a centenas de anos atrás e a sentença ficou transformada em norma que ninguém ousava revogar.     

Baile com luz negra foi um horror. A primeira vez que, na Associação Atlética de Itabaiana, década de setenta, mais precisamente, no seu início, num baile, apagaram as luzes, para ficar só uma penumbra, um cidadão, cuja filha dançava com o namorado, acendeu todas as lâmpadas, à revelia da direção do clube. Quem quisesse dançar no escuro que fechasse os olhos, proclamou no alto de sua autoridade de pai, alegando que, nem no Rio de Janeiro, se fazia baile assim, no escuro. Ninguém, da diretoria do clube, ousou apagar, outra vez, as lâmpadas, pelo menos, naquela noite.

Juiz de Direito de Nossa Senhora da Glória, no final da década de setenta, viajando de ônibus, ao passar por Feira Nova, ouvi de uma senhora, ao meu lado, vendo as alunas do ginásio com short, dentro da aula de educação física, que uma mãe, de respeito, não deixaria nunca uma filha sair de casa daquele jeito. Filha dela, de short, assim, na rua, na presença de homens, nem pensar. Foi nessa mesma época que um estabelecimento comercial em Itabaiana resolveu colocar, na vitrina, um manequim, em exposição permanente, e, ainda mais, portando um biquine. O velhinho, lavrador aposentado, chapéu na cabeça e chinelo gasto nos pés, morador da cidade, parava, olhava e deitava falação. Aquilo era o final do mundo, berrava e proclamava. Mas, não saia de perto, o olhar de vira-lata faminto na apreciação das bonitas formas do modelo, ainda que a boca, contrariando o coração, entoasse canto de condenação.

Os preconceitos foram, aos poucos, sendo derrubados. Há sempre a infantaria, que sai na frente, Leila Diniz pulando muro e impondo comportamentos novos, como, antes dela, Chiquinha Gonzaga ditou moda. Da Corte para as províncias, as revoluções sociais se fizeram de forma lenta, mas, gradativamente, os sintomas chegando, aqui e ali, acabando com toda a cautela e exagero do vestido longo a esconder o corpo. A televisão deve ter contribuído muito para a alteração de atitudes, com a liberação de roupas, gestos, e atitudes. 

Joãozinho Retratista,  estivesse vivo e atuando ainda como fotógrafo, ia gostar, mesmo sem ter ideia exata de que a sua montagem foi um dado pioneiro de evolução na década de quarenta do século passado. E se tivesse paciência para aprender a navegar na internet, ia, ainda, achar que a montagem feita, a que gerou uma surra na jovem conterrânea, minha parenta não mui distante, não se constituía, nem de longe, em um minúsculo e imperceptível grão de areia no meio do deserto de Saara das fotos que circulam nos quatro cantos do mundo. Não só ia achar, como, cá pra nós, ia gostar também. E muito.