Firmino, Euclides e a máquina

Era nosso vizinho da Itabaiana de minha infância. Moreno, alto, magro, meio acoblocado, mistura de índio com preto. O nome era quase um segredo: José Tiburcio de Oliveira. O apelido o fazia conhecido de todos: Firmino do Fosco, porque tinha, em casa, uma rudimentar fabricação de fósforo, que era vendido nas feiras. Por causa do seu apelido, demorei a aprender a chamar fósforo, ficando no erro até tomar vergonha. Tinha uma bicicleta de marca inglesa, única em Itabaiana, à época, bem cuidada e lubrificada, de seu uso exclusivo. Aliás, como consertador de bicicleta viveu seus últimos anos, deixando a fabricação de fósforo, que lhe integrou o apelido, de lado. Fora disso, era casado, e, anualmente, um filho sempre chegava a sua residência, um deles, afilhado de meus pais. A mãe, mais índia que ele, era calada, passo leve, silenciosa como uma sombra. Não me lembro de lhe ter ouvido a voz em ocasião alguma.

De outro lado, está a figura de Euclides Paes Mendonça, prefeito de Itabaiana, afastado da Prefeitura para se candidatar a deputado federal. Chefe poderoso da UDN local, simpático, espirituoso, tinha a seu favor toda a máquina eleitoral, inclusive uma caneta que o escrivão eleitoral destinava ao eleitorado do PSD, que, no momento em que o candidato a eleitor começava a assinar o nome, os dois bicos se abriam e a pessoa, nervosa, terminava sem conseguir garranchar o nome, não obtendo a inscrição, para sossego da família udenista, diga-se, da família euclidiana. Euclides sabia se movimentar e explorar bem a mídia. Tanto que, mesmo sabendo, de antemão, que o eleitorado de Itabaiana, na sua maioria absoluta, estava em suas mãos e sufragava o seu nome e o de seus candidatos, ainda se preocupava em fazer constante propaganda, aspecto que, ainda focalizaremos, na demonstração de ter estado sempre à frente do seu tempo.

Mas, o que une um humilde fabricante de fósforo e, depois, consertador de bicicleta, a Euclides Paes Mendonça, empresário bem sucedido, como, aliás, todos os Paes Mendonça, e ainda mais, chefe político da situação? Firmino do Fosco não era udenista, não falava em política, não frequentava casa de ninguém, transformando a sala da frente da sua casa em a oficina de consertar bicicletas, alinhar pneus, passar graxa nas rolimãs, etc. e etc.

Vivíamos, à época, às vésperas da eleição estadual de 1962, a última do período. De um lado, Leandro Maciel, querendo retornar ao Governo. A sigla da candidatura muito bem bolada: Ninguém se perde na volta. Do lado pessedista, Seixas Dórea foi pincelado das hostes udenistas, à míngua de outro nome forte na ala do PSD. Itabaiana se dividia entre udenistas de Euclides e pessedistas de Manoel Teles. Um ou outro gato pingado se mantinha alheio a um dos dois nomes. O mais, se embebedava da eleição, que contaminava todos, os udenistas querendo se manter no poder estadual, os pessedistas esperando ver na eleição de Governo Estadual o consolo para quem não conseguia colocar os pés na Prefeitura.

Mas, veio das bandas euclidianas a novidade que deixou muita gente aturdida: Euclides tinha em mãos uma máquina que apontava quem votou contra a UDN. Como a conversa nasceu, não se sabe. Há quem diga que Euclides teria usado um gravador em algum povoado. Depois de gravar a conversa, o matuto, que teria sido seu interlocutor, ficou assombrado ao ouvir a própria voz. Não sei se foi mesmo assim. O certo, e eu lembro perfeitamente bem, é que a notícia correu as ruas de Itabaiana. A máquina de Euclides apontaria quem não votasse em seus candidatos. Deus do céu! O segredo do voto ia para as cucuais.

Não conheço outro exemplo na política sergipana de um boato igual a este. Só uma mente fértil poderia criar uma notícia dessa, que tornou-se, por muito tempo, no motivo para as conversas de todo mundo. Uma máquina capaz de apontar quem votou contra e quem votou a favor. Uma coisa assombrosa, fora de qualquer cogitação. Como seria a máquina? Quem lá sabia. É certo que muitos refutaram a sua existência, como algo inacreditável. Mas, vindo de Euclides, não se poderia duvidar. A máquina foi, portanto, um argumento a mais que a UDN teve em Itabaiana a seu favor. A máquina que ninguém viu, mas muitos se apracataram com receio do que poderia ocorrer, quando os votos fossem contados e a máquina apontasse um a um todo mundo que não votava em Euclides.

Firmino do Fosco, silencioso e risonho em sua atividade, acreditou na máquina. Um dia, em pleno ofício de consertador de bicicletas, perguntei em que votaria. Em seu Euclides, respondeu. Argumentei: mas você não é udenista. Não, não era, mas tinha medo da máquina de seu Euclides, respondeu. Ou seja, não queria se arriscar. Família numerosa para criar, não poderia sofrer nenhuma perseguição, preferindo votar nos candidatos da UDN, mesmo sem ser udenista, nem tampouco euclidista. Se votou, ou deixou de votar, não sei, como não sei até quanto tempo a máquina permaneceu viva como assunto que a eleição, cada vez mais próxima, suscitava. As lembranças se perdem no tempo.

A eleição, enfim, ocorreu. A UDN ganha em Itabaiana com diferença de mais de um mil votos, resultado já esperado. Mas, perde no computo geral, com a vitória de Seixas Dórea para o governo do Estado. A máquina não apareceu, nem ninguém falou mais nela. Quem votou contra a UDN saiu às ruas, de madrugada, sob o rufo de bombas potentes, para comemorar a vitória de Seixas. Quem votou na UDN, deve ter se acordado com dor de cotovelo, porque as bombas eram constantes. A família pessedista comemorava a vitória. Eulina Nunes, religiosa da Igreja Presbiteriana, candidata a vereador, em seus discursos, anunciava o nome de Seixas Dórea como o Messias que vinha para libertar o povo de Itabaiana.

Um dia desses, me lembrei da máquina ao ler, em algum jornal, uma notícia atinente a um grupo político anunciando a presença de idêntica máquina, para amedrontar o povo. Exclamei para mim mesmo que era a máquina de Euclides, que não tendo sido levada para Itabaiana, décadas e décadas depois, surgia em outro lugar, em algum recanto aí da América Central. Só que a máquina de Euclides levava mais vantagem: foi a pioneira. Não existiu, nem foi vista por ninguém, mas meteu medo. E, ainda mais, sem ter existido, conseguiu a façanha de se tornar em objeto de conversas, para apimentar mais ainda o clima eleitoral de Itabaiana às vésperas da eleição de 1962, como uma página singular que, acima de tudo, mostra o espírito irrequieto de Euclides Paes Mendonça e o cenário que os números do resultado não conseguem retratar.