Euclides, a perda da memória

A idéia pintou no ar e imediatamente, eu e Luiz Carlos fomos falar com Antonio Melo: aprender a tocar. Nesse exato momento, a banda funcionava numa sala, no Beco do Cisco, fundo da sede da UDN, - esta voltada para Praça da Matriz -, onde tivemos as primeiras lições. Ano: 1964.  Não sei exatamente quando, nem em que circunstância, um dia, tive acesso ao território da fechada sede da UDN, não me lembrando se foi por algum corredor que ligasse as duas áreas ou se foi em momento anterior a mudança do local de ensaio da banda do fundo [Beco do Cisco) para a frente [Praça da Matriz]. O certo é que guardei na memória, além da poeira no chão, ter visto duas mesas com caixas de sapatos, superlotadas de fotos 3x4, e, nas paredes da sede da UDN, numa sala retangular, um punhado de quadros, nos quais Euclides Paes Mendonça aparecia em todos, em diversas ocasiões e solenidades.

Eis, então, o ponto nevrálgico de tudo.

Euclides cultivava a fotografia, ou seja, dele próprio, procurando ser retratado em atos públicos, fotos que, tamanho, ao que imagino, 15x21, era colocado em uma moldura e passava a enfeitar as paredes da sede de seu partido. Muitas dessas fotos eu já conhecia, de jornadas anteriores, como, v. g., as reuniões ali durante a campanha eleitoral de 1962, quando Leandro Maciel foi derrotado por Seixas Dórea para o governo do Estado. Em algumas noites de movimentação, Euclides no comando, eu lá aparecia para observar. Os quadros se grudavam nas paredes, de um metro para cima, documentando a trajetória política de Euclides, uma senhora galeria de fotos, a vida de Euclides ali espelhada, levando ao seu lado a história da então atualidade de Itabaiana.

Nem antes dele, nem depois, nenhum outro chefe político de Itabaiana cultuou a foto como Euclides fazia.

O lado negativo é que todo aquele importante acervo desapareceu. A banda saiu do Beco do Cisco para a Praça da Matriz, e a sala retangular, que servia de sede da UDN local, habitou-se de músicos, nas terças e quintas, dias de ensaio da banda, e nos demais, para as aulas de solfejo. Os bancos da banda passaram de um lado para outro. Antonio Melo, que deve ter comandado a mudança, não está mais aqui para contar a história. Quando lá passei a frequentar para as aulas de solfejo e depois aulas de sopro na trompa. Com que marcaria minha estréia na banda, as fotos lá não estavam mais. Faltou-me a iniciativa de perguntar pelo seu paradeiro, omissão que a minha idade, à época, quatorze anos, serve de justificação. A morte de Euclides doía na mente dos udenistas, entre eles, Antonio Melo, inibindo os alunos - eu, de origem pessedista -, de mergulhar no assunto.   

Agora, no ano do centenário de nascimento de Euclides Paes Mendonça, esse documentário importante - que não existe mais - é um zero a esquerda, pelo desleixo que tiveram com o seu acervo fotográfico. Se foi jogado no lixo, se foram as fotos retiradas dos quadros e guardadas, se foram entregues a alguém da família, qual o destino dado, afinal, tudo se perde no tempo, no acervo extraviado, que faz falta, como uma das melhores características euclideanas, na sedimentação de seus passos na rápida caminhada pela história de Itabaiana.

É certo que ainda há fotos muitas de Euclides por ai, espalhadas ou reunidas , e neste último ramo, Rogério Barreto Santos conserva em seus arquivos um bocado delas -, como Euclides dançando, fazendo pose no Rio de Janeiro ao lado de comerciantes locais, em casa ao lado de Sinhá, em almoço com autoridades políticas e eclesiásticas, inclusive com Padre Artur acompanhando o Arcebispo D. Vicente Távora, Euclides no meio dos que comemoravam a vitória do Brasil na Copa do Mundo de 1958, entre outras. Mas, infelizmente, o seu acervo - Euclides nas caminhadas pro Jânio nas eleições presidenciais de 1960, segurando uma vassoura, Euclides a frente do palanque na Praça da Mariz ao lado de udenistas da primeira grandeza estadual, Euclides ao lado de Jânio, Leandro e Luiz Garcia e outras e outras fotos - se perdeu, foi para o lixo, ou, quem sabe lá, e oxalá, se encontre bem guarnecido em alguma casa de udenista saudoso, oxalá dez vezes.

A foto de Dorinha, pendurada na sede da UDN no início da década de cinquenta, debaixo de muito discurso, foi substituída pela imagem de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da banda. As de Euclides, bom, desapareceram, e esse, justamente esse desaparecimento, que um tanto tardiamente, se reclama, representa, no fundo, uma segunda morte de Euclides, agora sob o trajo da perda da memória.