O platibanda da casa de meu pai


A frente da casa tinha platibanda, exibindo quatro janelas e uma porta. A parede, de alto a baixo, era toda pintada de verde, tinta à óleo, como me disseram. Da frente da casa tinha imenso orgulho, que compensava as necessidades vividas, como a presença ainda do fogão à lenha e a falta de uma geladeira. A minha grande riqueza se concentrava na fisionomia da casa, como se fosse suficiente para me fazer feliz, como me fazia. Não contava o interior, quartos de um lado e de outro, e, do que me lembro, eram cinco, o pátio de cimento, bem liso, e o quintal dividido em duas partes, onde havia goiaba com fartura, salas que a gente nem usava. Mas, o que me enchia mesmo os olhos era a frente da casa, o platibanda, a cor verde bem escura, como se toda riqueza do mundo ali se concentrasse para meu maior gáudio.


Não diria que a casa do meu pai fosse a mais bonita de Itabaiana. Havia outras que, num concurso que se fizesse, daria de chinelada na minha, a começar pela de seu Edson Leal, que tinha um andar, única naqueles tempos, andar que marcava sua superioridade. Os sobrados, alguns que ainda alcancei, também ostentavam o primeiro andar, e da varanda, a gente se deslumbrava com a paisagem que a altura proporcionava. Os sobrados, contudo, não se igualavam a casa de seu Edson Leal, na qual só adentrei uma vez, e, assim mesmo, não passei de uma sala. A de Euclides era enorme, muro baixo, varanda a frente, quarto de um lado, a entrada para a garagem, encontrando empeço na varanda onde o dono cultivava uma rede, cercado de bom número de puxa-saco, casa que ia da praça até a Rua das Flores.  À época, os bangalôs chegavam. O de Neusa, com o letreiro no platibanda, - Lar de Neusa -, de bonita, parecia uma casa de bonecas. O bangalô de Irineu Andrade, também na Praça da Igreja, em cuja varanda tinha um sofá de ferro que a gente, quando tinha acesso, se balançava, como se estivesse nos balanços da feirinha de Natal, também se destacava. Ainda a de seu Bonfim, toda esverdeada e cheia de rococó, na Praça da Santa Cruz. Mas, nenhuma dessas casas tirava de minha cabeça a coroa que deveria ser colocada, única e exclusivamente, no platibanda da casa de meu pai. Esta, sim, a casa que me enchia os olhos e entupia meu coração de orgulho.


Do acervo de fotografias de Vicentinho da Sapataria, tirei cópia de uma foto da frente lá de casa, datada do ano de 1936 ou 1939, que, embora um tanto de lado, mostra, com exatidão, a frente da casa de papai. É a única que se salvou, do meu modesto conhecer. Pode ser que alguém guarde uma foto na qual a casa de meu pai apareça em melhor posição, tal como era quando nasci, há tantos meses de abril passados. Pode ser, principalmente quando, aqui e ali, fotos antigas são postadas para despertar a saudade dos mais velhos. Oxalá! Oxalá!


A frente da casa de meu pai, com seu platibanda verde, não foi eterna. Numa reforma, mudou de fisionomia. Deixou o platibanda de várias décadas de lado, com marcos de cimento que se assemelhavam a caqueiros, bem à antiga, adotando outra feição, contando com a total conivência de papai. Assistimos calados, talvez entusiasmados pela mudança, sem saber que, com a alteração, se matava o passado, arrastando para a sepultura o platibanda de cor verde, bafejado pela tinta a óleo, para dar lugar a um platibanda novo, que não me gerou nenhum entusiasmo, nem mexeu com meu coração. Talvez, à época, outros fatos da vida me atraíssem mais que o platibanda  novo. Eu já não era menino e o horizonte da vida já era mais largo. O certo é que o platibanda velho, original, que me encheu o coração de orgulho, desapareceu, para que novo, bem mais simples, adotando um formato quadrado, o substituísse. 


Um dia, de máquina em punho, fotografei o novo, como se tivesse em mente que este não desfrutaria de vida longa, como o outro, pelo qual me derretia de amores, teve. É uma foto em preto e branco, destacando bem a casa de meu pai e a vizinha, a última na sua feição dos meus tempos de menino. Estava certo. Poucos anos depois, um novo platibanda foi erguido em lugar do segundo, que também me mereceu o registro fotográfico.


Juntando os três, é do primeiro que me lembro, e que bate na porta do coração, justamente no compartimento da saudade. A frente da casa, com o platibanda verde, desapareceu, morreu, como nós morremos a cada dia, quando vamos passando de uma fase para outra. Ficou numa única foto, a de Vicentinho da sapataria, que meus cuidados conservou, foto que me ajuda a restaurar a frente da casa de meu pai, quando, com todo o esforço do mundo, não consigo retroagir no tempo para voltar a ser, outra vez, o menino que tanto o admirava.