Ela e as três bonecas

Ela me disse, uma vez, entre outras tantas e milhares de afirma?es, porque a gente conversava muito e, mais do que isso, ela n?o parava de falar, que o irm?o, que a seguia na ordem de nascimento, Manuel, quando menino, rasgava as bonecas de pano das tr?s irm?s, ou seja, dela, de Anita e de Josefa. As bonecas de pano, de vestido colorido, o branco imperando no rosto, bra?os e pernas, e, elas, as tr?s mais velhas da casa, se vendo, sem for?as para impedir, suas bonecas, provavelmente as ?nicas, serem despeda?adas.

Naqueles tempos, d?cada de vinte do s?culo passado, as bonecas eram os ?nicos brinquedos dispon?veis para as meninas, e, por a?, coloco a cabe?a para imaginar como seria o ambiente em uma fazenda, entre Macambira e Frei Paulo, com a m?e parindo ano ap?s ano, e as mais velhas tendo uma de tomar conta da mais nova e dos/das que iam nascendo, como nasceram, num total de treze. A destrui??o das bonecas de pano, medidas as propor?es da ?poca, se revelava num tormento para as tr?s mais velhas, sem op??o de brincadeira nos instantes de folga.

Pois bem. Numa pra?a em Goiana, em frente a uma secular igreja, me deparei com v?rias bonecas de pano e adquiri uma para lhe levar de presente. Uma boneca preta, das pernas confeccionadas num cord?o, no final do qual os sapatos balan?am.  Esta n?o ? a primeira boneca que lhe levo. Em Fortaleza, nas barracas instaladas em frente ? sede da Justi?a Federal, no centro hist?rico, adquiri outra, menor e gordinha, como, em Blumenau, num aglomerado de lojas e restaurantes com motivos da Alemanha, trouxe-lhe uma, representando a imigrante alem?, com seus trajos t?picos, boneca que, na ?ltima vez em que a vi, estava l?, pendurada na parede, bem pr?xima a sua cama, onde ela, a sua dona, dormia, porque, mesmo de olhos abertos, n?o det?m mais consci?ncia daquilo que a cerca, navegando, nos bra?os de enfermeiras, entre a cama, no quarto, e a cadeira, na sala, a boca sem se abrir mais para dizer uma s? palavra, o olhar perdido num horizonte de paredes, sem a manifesta??o de qualquer movimento, a n?o ser o de mexer a perna e o bra?o esquerdos.

? justamente a m?o esquerda que h? de segurar a boneca, quando puder ir a Itabaiana, m?o que ainda se abre para manter firme um objeto, e, nada melhor que a boneca de pano, por representar algo fofo, sem oferecer perigo algum de  machuc?-la, sobretudo em se tratando de uma pele branca, mais branca ainda pela falta de contato com o sol e com qualquer outro objeto. A boneca preta est? guardada, ? espera da viagem, ansiosa, talvez, para ver sua dona, e eu, igualmente, ansioso, como se fosse poss?vel ainda retroagir a tantas d?cadas para ser alvo das brincadeiras de uma menina, de nome Maria, que, aos vinte e seis anos, se tornou minha m?e.