Lições que aprendi com meus pais

        Nos meus tempos de criança, os sonhos de consumo, no lugar onde nasci e vivi, restringiam-se a coisas simples, porém, difíceis, quer pelo desconhecimento, quer pela dificuldade de encontrar, ou pela simples falta de recursos para comprar. Não havia dinheiro e nem variedade de bens.

        O sonho de luxo dos adultos era ter um bom cavalo ou burro e, naturalmente, bons arreios: sela, cabresto e estribo, para poder ostentar seu “veículo” nas viagens distantes: uma ou duas léguas já era um percurso bastante longo para ser vencido a pé e, naquele tempo, para os mais remediados, era o velho burrico quem fazia a integração daquela região.

        Raríssimos tinham uma bicicleta e um “Motor Java” (o que hoje chamamos “moto”), já era um sinal de muita riqueza, um Jeep, então, era o máximo, somente os milionários possuíam.

    O sonho da garotada era ter uma bola de meia, um carrinho de madeira, feito, às vezes, por eles mesmos, e alguns petrechos de trabalho: uma boa enxada tupy, de sete polegadas, uma foice de roçar mato, uma boa espingarda ou uma baladeira, para matar passarinho, (que vergonha ter que dizer isso! Que Deus e os passarinhos que abati, perdoem a minha perversidade infantil).

        Mas, Deus sabe, que era a lei da sobrevivência, eram eles, os passarinhos, ou nós a morrer, eles de pedradas ou nós, os humanos, de fome. Eles estavam, e ainda estão, infelizmente, em desvantagem, nós sabemos, não são mais as rústicas baladeiras de borracha de câmara de ar e um cambito de madeira, e as espingardinhas de “socar” dos meninos, que os sacrificavam. Não. Agora são os venenos, a ocupação desordenada dos espaços, a poluição do solo e das águas, sem dúvida que dizimam muito mais do que nós com nossos estilingues, naqueles tempos de saudade, Deus nos perdoe.

        Mas todos sonhavam também em possuir mais algumas coisas essenciais para a consecução das necessidades primárias: um bom landuá (jereré), anzóis de alguns tamanhos, desde bem pequeninos para piabas, “maiorzinho” para carapebas, piaus e cangatis e maior ainda, para traíras. Com esse arsenal, nós atacávamos os charcos, rios, açudes e lagoas, tirando deles a nossa sobrevivência, peixes de todos os tamanhos, de bem pequeninos a pequenos normais, raramente médios. Estes somente em ocasiões especialíssimas: cheia de rio, sangramento de açudes etc.

      Varávamos noites, dando sangue aos mosquitos na beira de um rio, pescando com os velhos “landuás”, ou facheando, (matando peixes a facão), este tipo de pescaria, muito usado pelos índios, constava em encandear os peixes com uma luz emanada de um “facho” que constava de uma madeira “facheada”, com fogo numa extremidade, conduzida pelo pescador que, com o “facho” numa mão e um facão na outra, executava os pobres peixes com um golpe certeiro do facão.  Sim, esta metodologia servia também para aprisionar passarinhos. Sem o facão, é claro. O sacrifício acontecia puxando a cabeça do indefeso pássaro... Mais uma barbaridade praticada contra aquelas indefesas criaturinhas de Deus. Mas, como já disse, aquela era a única forma que tínhamos de nos alimentar e continuar vivendo.         Todavia, eu falava de sonhos de consumo, e deu para perceber que eram de difícil realização, pois não tínhamos como comprar, não é que fossem de todo muito caros, é que não tínhamos o dinheiro, mesmo o pouco, para nós era muito.

        Usávamos muito os empréstimos, pedíamos aos vizinhos e parentes. O escambo era muito usado também. Para adquirir ferramentas, trocávamos, por exemplo, um anzol por uma gaiola, um surrão por um landuá, um borrego por uma tarrafa, uma pedra de amolar por um pilão, uma galinha por uma foice etc.

        Porém, meu pai sempre nos deu grandes lições de moral e, desta que vou contar, não esqueço nunca.

      Havia, naquele tempo, uma grande dificuldade para arranjar comida. Na nossa casa mesmo faltava, de vez em quando o essencial: feijão e farinha. Carne, pão, arroz, queijo etc., eram coisas raríssimas.

     Certa noite chegou meu pai com um pedaço de queijo, foi uma festa, até menino que já estava dormindo foi acordado para comer um pedacinho. Mamãe cuidou de dividir. Mas, antes, tirou a casca, depois, distribuiu a todos um pedacinho de queijo e um pouco de farinha.

        Ela dizia que não devíamos comer as cascas, pois era onde estava toda a sujeira, e tinha muitos “milcobres”, pois era onde pousavam moscas e outros bichos, além de que os locais onde eram colocados, nas bodegas, não eram apropriados e nem limpos.

        Eu, sempre desobedecia e, ia atrás das casquinhas e comia todas. Minha mãe, fazia que não via. Mas ela sabia que a minha desobediência se justificava na falta que sentia de mais alimento. Por isso ela se fazia que não sabia e, garanto, rezava para que eu não me contaminasse com os “milcobres”.

         Então neste dia, não foi diferente, depois que ela fez toda a divisão e, cada qual comeu o seu pedaço e foi dormir eu fui sorrateiramente a cozinha e, em cima do fogão a lenha), onde ela deixava, parece que de propósito, as casquinhas e, coloquei na boca. E, ao mastigar, senti umas coisas espetando como se fossem pequenos objetos metálicos, pedaços de arame, pensei.

      Cuspi tudo aquilo no chão e chamei minha mãe. Ela aproximou a lamparina e, vimos o que era. Eram anzóis, muitos anzóis bem pequenininhos, anzóis de pegar piabas, fomos ver onde ela havia descascado o queijo e, lá estavam grudados nas cascas e espalhados pelo fogão, muitos anzoizinhos. Separamos todos e, alegres fomos dizer a papai que estava sentado no terreiro da casa: papai, papai, conseguimos um bocado de anzóis, amanhã mesmo, vamos pescar muitas piabas...

- Foi mesmo, filhos? Onde vocês acharam tanto anzol?

       Ai, nós todos ao mesmo tempo, eufóricos de alegria, mostramos realizados, a nossa grande descoberta.

- Vieram grudados na casca do queijo?

- Se vieram grudados na casca do queijo, não são nossos. Eu não comprei nenhum anzol, dê cá todos os que vocês encontraram!

        E, neste instante, usando de toda a sua autoridade e amor, nos chamou e deu-nos uma das maiores lições que nós poderíamos receber.

- Meus filhos, estes anzóis não foram comprados por nós, por isso não são nossos vou devolver ao compadre Chico Rosa, deve ser dele. Se, por acaso, ele me vender fiado, eu compro para vocês, mas, juntem todos que vou devolver amanhã cedinho. Pescaria com anzol roubado não é abençoada e, nós só devemos ter aquilo que é abençoado por Deus.

         Devolveu. De fato, os anzóis eram do Senhor Chico Rosa. Mas, o melhor de tudo foi o que o nosso bodegueiro e benfeitor disse:

- “Cumpade Bastião”, você já é a segunda pessoa que vem devolver anzol hoje. Meu Deus! Tenho muito orgulho de ter vivido numa época em que ser honesto era espontâneo, não havia tantas leis e nem tanto desrespeito.

     Hoje, ao contrário, parece que quanto mais leis, mais desrespeito, mais desonestidade. Estamos vivendo um momento muito triste em que devemos nos guiar pela lei e, não pelo certo.  

O QUE ACONTECEU, ENTÃO, PARA QUE OS ANZÓIS GRUDASSEM NA CASCA DO QUEIJO?

     O Amigo e compadre de meu pai, senhor Chico Rosa, ainda nosso parente, comercializava em seu estabelecimento uma grande e diversificada variedade de mercadorias, peço permissão para descrever aqui o que a memória me permite: feijão, farinha, querosene Jacaré, banha de porco, rapadura, fumo, feijão, açúcar, óleo de caroço de algodão da marca Pajeú, alguns medicamentos como: melhoral, cibalena, instantina, cibasol, pílula do mato, pílulas de bristol, elixir de paregórico, emulsão scott, neocid, veramon... brilhantina glostora, atkinsons, flor de manacá, sabonete lux, pasta colipe, uru, surrão...  anzol e queijo. Foi aí que tudo aconteceu: A iluminação era muito fraquinha, feita por mortiças lamparinas de pouca luz. O nosso Caixeiro ao atender a um freguês pescador de piaba, certamente e, sem querer, derramou, em cima do balcão, uma infinidade daquelas minúsculas peças de pescar e, por enxergar pouco, não viu.

      Lá ficaram à espera de alguma ação que os jogasse ao chão ou os atraíssem, grudasse e, foi aí que meu pai chegou, querendo adquirir algo para saciar a fome da tropa que, em casa estava rezando e pedindo a Deus que aparecesse alguém que fiasse algo, fosse o que fosse.

      O Sr. Chico Rosa, na sua bondade de, também pai de família, entendeu o desespero do meu saudoso pai e, o queijo com farinha foi uma abençoada solução.

     Por conhecer bem meu ponderado pai, até entendo o porquê dele nem querer pedir mais umas 250 gramas de açúcar e umas 100 gramas de café. Com certeza imaginou: vai que se eu pedir muito, excede a boa vontade do compadre e ele não me vende nem o queijo e a farinha.

     Então, nosso bom Chico Rosa, tira o queijo da “tauba de queijo” e coloca em cima dos anzóis, quero dizer, do balcão onde eles estavam, para ser cortado. Foi aí, que aconteceu a união indevida e os anzóis foram pescados e embrulhados juntos indo parar na minha boca, quando, finalmente, foram percebidos.

     Sim, se meu pai conseguiu comprar anzóis para seus pescadores? Não. Senhor Chico Rosa, não os vendeu, ele doou dois anzoizinhos para cada um de nós, foram seis ao todo. Isso significou muito para nós, fizemos uma farra e, durante muito tempo, pescamos muitos peixinhos. Anoitecíamos nas beiras do rio e charcos pegando piabas para comer torradinhas no óleo Pajeú com feijão e farinha, uma delícia. Os anzóis foram doados, eram abençoados. Portanto, as pescarias também.