Eu, O Cruzeiro e a frustração

      Caspa, eu, hein? Era mais ou menos assim a frase. Qual o remédio recomendado? Aí não me lembro. Havia outra propaganda, desta vez de Kolynos. Um casal de noivos e a irmã ou o irmão da noiva com problemas de cárie.  Kolynos resolvia. E o sabonete das estrelas? Era Lux? Não consigo puxar mais da memória no terreno das propagandas, depois de quase ou mais de cinqüenta anos de leitura das páginas de O Cruzeiro. Não dá para chegar mais adiante porque a corda não vai até o fundo do poço.

     Eu lia O Cruzeiro na casa de tia Madrinha, tia-avó, materna, à noite. Ia com papai. A conversa entre os adultos se estendia e eu com a revista na mão, página por página, passando os olhos nos retratos das reportagens, as fotos numa tonalidade marrom, a coluna política de David Nasser – uma das quais, o artigo tinha o título de O coice do pangaré, na focalização de um murro que teria recebido de Brizola; a Última Página de Rachel de Queiroz; o Amigo da Onça, de Péricles; as charges de Carlos Estevão, algo com o nome de Pif-Paf, o noticiário político em duas páginas, do que consigo me lembrar, além das reportagens normais.

    Zé Queiroz fazia a distribuição de O Cruzeiro em Itabaiana, o cheiro do papel novo saltando das páginas da revista que, um dia, teve uma capa bem itabaianense, com o retrato dos três gordos da Praça da Bandeira. Os três ou os dois mais velhos, sentados, ao que parece, no batente de um carro em Aracaju, as mãos estendidas para o fotógrafo, a pedir um dinheiro, como faziam nas ruas de Itabaiana, que ficou orgulhosa por vê-los nas páginas da revista. Os gordos da Praça da Bandeira, com a cara redonda, as pernas arqueadas, um deles atendia pelo apelido de Cau, se constituíam num sucesso onde chegassem pelo tamanho da gordura. Deles tenho umas quatro fotografias, com seus enormes calções, ora os dois mais velhos, ora os dois com o mais novo, que ia no mesmo compasso de gordura dos irmãos. Menino, ouvia a notícia de que comiam um cesto de pão de manhã cedo.

    Mas Itabaiana não ficou só com a capa dos gordos e a reportagem respectiva. Foi notícia, também, na coluna de O impossível acontece. Ouvi o comentário de papai, durante o almoço. O desfile de 7 de setembro ocorreu em dia que não era 7 de setembro, o que foi o suficiente para alguém escrever para O Cruzeiro. A nota saiu e o diretor do Ginásio não gostou. Sentiu-se ofendido. Fazer o ginásio desfilar em dia que não era 7 de setembro soava como algo impossível de ocorrer. O autor da nota? Quem sabe lá. Alguém que sabia ler.

    Depois veio a morte de Euclides. O Cruzeiro foi a Itabaiana colher a notícia. Fotos de Euclides e do filho com um pano preto, a anunciar a morte antecipadamente, foto de Sinhá, a viúva, foto das sessões da comissão de inquérito da Câmara dos Deputados, instalada na sala da Prefeitura Municipal, e a multidão que se espremia na sala para ver o que acontecia.  Eu via a reportagem e ficava arretado da vida porque não sabia das sessões da comissão de inquérito e, em conseqüência, não podia também estar lá, de perto, para testemunhar ato por ato. Muitos anos depois, li, nos anais da Câmara dos Deputados, o relatório apresentado, fato que não diminuiu a frustração de não ter presenciado uma só sessão. E olhem que Itabaiana era bem pequena naquele tempo e eu só tinha treze anos e morava no centro da cidade.

    A irritação de não ter visto uma só sessão da comissão de inquérito ainda me machuca, hoje, por não ter ouvido de ninguém qualquer referência antecipada ao fato.  Vi muitos da minha idade e outros de idade maior nas fotos, de maneira que, às vezes, chego à conclusão que, no fundo, tive foi inveja de quem foi fotografado no meio da platéia que superlotava a primeira parte do salão da Prefeitura, a funcionar também como sala da Câmara dos Vereadores e sala de audiência do juiz de direito da Comarca.

    De Itabaiana com O Cruzeiro é o que me lembro. Talvez os mais velhos possam trazer outras informações. Sei que Sebrão, sobrinho, tinha a coleção completa, que a viúva doou ao Arquivo Público. Um dia ainda vou lá, folhear alguns exemplares – se ainda existirem, naturalmente. Talvez, vendo, de novo, a foto da multidão espremida possa matar o fantasma da minha frustração de não ter estado por lá, também, ou, de curioso, ter perdido para sempre um momento histórico que Itabaiana, de então, vivia, ainda sem assimilar a morte de Euclides.