Migué Patavá e seu sítio

        Era baixo, rosto amarelado e enrugado, a voz a sair da boca como se fosse um saco de sons, que eu não entendia direito. Se calçava alguma coisa, era um chinelo velho, os pés cheios de fendas, parecendo riscos escuros. Na cabeça, um chapéu bem gasto. Tinha uma oficina de marcenaria na Rua das Fores, vizinho a bodega de Chico Bateria. Sua notabilidade não repousava nos móveis, que devia fazer, nem na forma de falar, mas na condição de coveiro do Cemitério. Tão importante que o Cemitério era conhecido como sítio de Migué Patavá. Me deixava curioso ao se vangloriar de que ia enterrar todo mundo em Itabaiana. Seria possível que a população toda morresse para Migué Patavá enterrar, eu me perguntava.

          Nunca discuti a assertiva aludida com ninguém. Mas, era olhar para uma pessoa, já de idade, e pensar que ela seria sepultada por Migué Patavá, destino implacável de todos de Itabaiana, enquanto ele fazia aquilo tudo sem estampar nenhuma tristeza na cara, o passo miúdo, como se tivesse abrindo e tapando cova burocraticamente. Nunca, antes e depois dele, na função de coveiro, alguém chegou a transformar o cemitério em seu sítio.

        Da arte empregada, me lembro bem, eu, entre a meninada, parentes do defunto e adultos, a observar, curioso, gesto por gesto de Migué Patavá. Primeiro,  a cova cavada, que sempre achei funda, a areia de lado, fazendo um minúsculo morro, que a gente gostava de pisar, no meio do terreno avermelhado, as paredes certinhas, o cheiro de areia revolvida, depois, caixão colocado numa mesa meio torta, os parafusos e argolas retirados pelo dono da funerária, e, estiradas  duas cordas de um lado para outro, para o caixão descer até o fundo da sepultura, as cordas equilibrando a pequena trajetória da urna funerária. Depois, era jogar areia no caixão, inicialmente fazendo um barulho, até ser coberto, todos curiosos enfiando a cabeça para captar a cena em sua inteireza, ajeitando a areia em minúsculo morro, e, enfim, a cruz era fincada. Mais um morto na lista de Migué Patavá.

        Não faço idéia se era casado, viúvo ou solteiro. Nem sei mesmo se morava na própria oficina, ou, em outro local, se vivia só ou se tinha companhia. Uma verdade posso aclamar: não enterrou todo mundo de Itabaiana, como anunciava, - talvez para ser notado como gente -, porque morreu em ano que não me chamou a atenção, nem me despertou interesse. Da caderneta de papai, hoje, colho o dia: 3 de fevereiro de 1964.  A expressão, cunhando o Cemitério de ser seu sitio, se diluiu com o tempo.

        Os que dele se lembram, talvez concordem comigo: Migué Patavá foi o mais característico coveiro do Cemitério de Itabaiana. Seria figura apropriada para um filme de assombração, no papel de guardião do caixão do Drácula. Dispensaria até maquiagem, nem precisaria de nenhum diálogo. Bastava seu movimento para um lado e para outro. Nunca vi, no cinema, um rosto mais apropriado que o dele. Pena que, com sua morte, dele ficou apenas o nome na lembrança dos mais velhos. Até o Cemitério deixou de ser seu sítio.