Evocações do tempo do cuspe


    Eu tomava café com leite em caneca de alumínio, banhada de esmalte. As quedas a desnudavam. Já a água era em copo de alumínio, da feira de Ribeirópolis, com meu nome nele gravado. Este ponto, bom destacar, sempre me deixou intrigado, porque nunca consegui ver nos sinais o meu nome. Papai dizia que ali estava inscrito. Eu terminava acreditando.


    Os fatos datam da década de cinquenta. Tempo de fogão de lenha, a fumaça deixando as paredes escurecidas, como acontecia na cozinha da casa de tia Madrinha. A lenha era trazida em carro de boi, que gemia pelos arredores da cidade. Lá em casa, entrava por uma porta no final do quintal. Ficava amontoada num beco, até ser arrumada ao pé de alguma parede. Enquanto não arrumada, costumava escalar o monte da lenha, para chegar ao outro lado, e, imediatamente, com o mesmo cuidado para não me furar em algum graveto, retornava, num vai e vem sem utilidade, numa aventura que me aconselhava cautela.         


    Quase tudo daquele tempo já não subsiste, como o costume que meu pai tinha de descascar a laranja e pendurar a casca no telhado para secar.  Ficavam ali por algum tempo. Depois, servia de combustível para acender o fogão, consumidas pelo fogo que ajudavam a acender. Com a chegada do fogão a querosene, o de lenha começou a ser relegado a plano secundário, até ser destruído por falta de uso.


    Havia a pedra que a gente levava para a escola no primeiro ano e só era abandonada quando já se sabia ler e escrever, substituída, então, pelo caderno. Na pedra, com um lápis especial, que se assemelhava ao giz, mas giz não era, se escrevia letras e palavras isoladas, a ponta do lápis fazendo um barulho gasturento na pedra. Depois, se apagava com as mãos ou com flanela, e quando estava bem suja, era limpa com o uso de manteiga, voltando a pedra a ficar novinha em folha. Também tive pedra e na pedra escrevi muita coisa, embora não me lembre mais quando a pedra se tornou obsoleta e deixou de ser vendida. Salvo engano, era adquirida em bodega. Tinha o formato de um retângulo. Muitos anos depois, visitando Nossa Senhora da Glória, d. Nair me levou até o museu de Véio, e, lá me deparei com uma pedra, fazendo brotar da mente a dor da saudade que a gente não sabe explicar onde nasce.         


    Tudo se perde nos bueiros da memória. O tamanco forrado de flanela vermelha, o sapato de borracha de pneu de caminhão que Tuó fazia, a barbearia de João Rocha, a categoria de seu Antonio, da Serra, que castrava gato, sem matá-los, mamãe segurando a galinha pelos pés, sangrando-a, até que o sangue enchia a xícara e a galinha ganhava a palidez da morte, para, depois, banhada de água quente, ser despenada e tratada, galinha que se transformava em pedaços saborosos que, no momento do almoço, eu não me lembrava mais da cena da manhã. Hoje, nem pago vejo uma galinha sendo sacrificada.         


    Evocações de fatos passados, trazidos, em parte, do tempo do cuspe, pela memória traquina, só para mostrar o longo tempo da distância do hoje para o ontem. Malvadeza pura...