Enterro de Anjo

     Enterro de anjo, sim, era a expressão que ouvi, menino, em Itabaiana, para designar o sepultamento de uma criança de poucos dias de nascida. Se tinha muitos dias ou alguns meses, não sei como era denominado o seu sepultamento, nem me recordo de ter participado de enterro de morto nessa idade. Mas, para as crianças de poucos dias, era enterro de anjo, o caixão bem minúsculo, de madeira, o pequeno defunto lá socado, bem pálido, usando uma das roupas do enxoval que lhe prepararam.      

     O ritual era bastante simples, e pelo que me vem à mente, somente as crianças compareciam ao sepultamento. Os adultos ficavam na casa do morto. Primeiro, saía uma criança com a tampa do caixão na mão, talvez a mais importante função no enterro. Depois, vinham quatro crianças, geralmente de oito a dez anos, mais ou menos por aí, segurando o caixão. O pai do pequeno defunto acompanhava o enterro a uma certa distância.      

     Havia o costume já arraigado de alguém da família se dirigir a uma escola próxima a fim de pedir a liberação de cinco crianças para o enterro: quatro se encarregavam de carregar o caixão e uma a tampa. Não havia preferência de sexo. Podia ser só meninos, como podia ser só meninas, ou, em geral, misturados.      

     Num desses enterros, registro, lá para os sete anos de idade, uma das minhas primeiras paixões brotou pela menina – magra, cabelos longos, linda, na minha visão da época – que conduzia a tampa do caixão. Ao passar o féretro pelo fundo de minha rua, meus olhos pousaram nela e o Cupido, sem levar em consideração minha pouca idade, me flechou o coração. Me apaixonei, juro. Não sabia quem era a criatura divina. Mas, fui me bater com ela na escola de Maria de Branquinha no ano seguinte. A paixão renasceu e não prosseguiu porque, fruto de um fuxico, levei um carão da professora na presença de todos, que arrefeceu o sentimento que acomodava no peito. Namoro complicado não era comigo, nem assentava para minha timidez o constrangimento vivido na presença dos alunos da escola. Foi para a caixa prego ali a minha paixão.

     Ainda na escola de Maria de Branquinha, algumas vezes, participei do grupo escolhido para o enterro de anjo. No retorno, o pai do pequeno defunto pagava bala de leite e de mel para os cinco alunos convocados, adquiridos na casa de dona Iaiázinha de seu Vivi. Era a recompensa para uma hora de liberdade da aula.      

     Um dia, uma colega, de nome Anísia, que sentava ao meu lado e a quem ajudava no dever, faltou alguns dias. Notei a ausência. Na mesma semana, ou na outra, fomos escalados para um enterro. Era o dela. Só ai fui saber que estava doente e tinha falecido. De que, não sei, nem perguntei, e hoje, mais de cinqüenta anos depois, acredito que tenha sido por falta de assistência médica ou pelo atraso da medicina da época. Estive no meio dos que foram escalados para pegar na alça de seu caixão. Anísia tinha uns seis ou sete anos, era mais nova que eu. O fato me abalou. Percebo hoje que, desde esse tempo, já era um sentimentalóide de lágrima fácil. Não chorei no enterro. Mas, senti um bocado. Interessante é que guardo a lembrança de sua feição – bem alva, magra, os olhos azuis, boca fina, voz leve e macia -, mas não me vem à memória o seu rosto no caixão. Talvez, instintivamente, tenha me recusado a vê-la morta.      

     Enfim, num enterro, no Canto Escuro, perto de minha casa, fui agraciado com a tampa do caixão. Só nesse e em nenhum outro mais. O defunto atrás, escondido no caixão, quatro pessoas a segurá-lo, e, eu, garboso na frente, com a tampa na mão, como se conduzisse um precioso troféu, a puxar o enterro.  Um dia de glória para os meus nove ou dez anos.